
Paradoxo da inclusão: entre a Lei 7.853/89 e a nova Lei 15.155/25
Gabriel Guy Léger
Leticia Veny Mendes de Souza
4 de novembro de 2025, 6h03
Leis
A sanção da Lei nº 15.155, de 30 de junho de 2025, que altera dispositivos da Lei nº 7.853, de 24 de outubro de 1989, reacende o debate sobre a efetividade das políticas públicas para a inclusão das pessoas com deficiência (PcD) no Brasil. Se, por um lado, a legislação de 1989 foi um marco fundamental na garantia dos direitos e no suporte à integração social, a nova lei, ainda que com boas intenções, parece não enfrentar de forma contundente os desafios que persistem, ou pior, pode gerar um entrave burocrático em vez de agilizar a inclusão.
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A Lei nº 7.853/1989 representou um avanço civilizatório. Ao dispor sobre o apoio às pessoas com deficiência, sua integração social e a criação da Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência (Corde), o legislador reconheceu a necessidade de ações afirmativas e de um órgão dedicado a essa pauta.
Em 8 de novembro de 2000 sobreveio a Lei nº 10.048 estabelecendo a prioridade de atendimento a idosos e pessoas com deficiência, assim como a reserva de vagas de estacionamento a esse público específico. O atendimento preferencial também foi estendido às gestantes, lactantes, pessoas com criança de colo, obesos ou com mobilidade reduzida.
Na sequência, a Lei nº 10.098, de 19 de dezembro de 2000, estabeleceu normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas “portadoras de” deficiência ou com mobilidade reduzida, visando eliminar barreiras e obstáculos em ambientes públicos e privados, no mobiliário urbano, no transporte e na comunicação.
Anos depois publica-se a Lei nº 11.133, de 14 de julho de 2005, instituindo o dia 21 de setembro como o Dia Nacional de Luta da Pessoa Portadora de Deficiência, norma que tem sua importância no cenário nacional ao reservar um dia específico no calendário para o debate do tema.
Pouca coisa efetivamente mudou na década seguinte, até a edição da Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015, quando foi instituída a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência), destinada a assegurar e a promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania (artigo 1º).
Para além de adotar preceitos da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU (CDPD), tratado internacional de direitos humanos, aprovado pela Assembleia Geral da ONU em 2006, e ratificado pelo Brasil em 25 de agosto de 2009, por meio do Decreto 6.949, a Lei Brasileira de Inclusão introduz a perspectiva da deficiência como um conceito biopsicossocial, onde a pessoa não é definida apenas por suas características corporais, mas pela interação com o ambiente e as barreiras existentes.
A lei também reafirma o teor da Lei nº 10.098/2000, que já versava sobre a necessidade da eliminação de barreiras físicas, atitudinais e de comunicação, tornando espaços públicos e virtuais acessíveis; assim como reprisa o teor da Lei 10.048/2000, no que tange à garantia atendimento prioritário para pessoas com deficiência em todas as instituições, serviços e processos, assegurando recursos humanos e tecnológicos adequados.
Consultor Jurídico
Leis
A sanção da Lei nº 15.155, de 30 de junho de 2025, que altera dispositivos da Lei nº 7.853, de 24 de outubro de 1989, reacende o debate sobre a efetividade das políticas públicas para a inclusão das pessoas com deficiência (PcD) no Brasil. Se, por um lado, a legislação de 1989 foi um marco fundamental na garantia dos direitos e no suporte à integração social, a nova lei, ainda que com boas intenções, parece não enfrentar de forma contundente os desafios que persistem, ou pior, pode gerar um entrave burocrático em vez de agilizar a inclusão.
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A Lei nº 7.853/1989 representou um avanço civilizatório. Ao dispor sobre o apoio às pessoas com deficiência, sua integração social e a criação da Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência (Corde), o legislador reconheceu a necessidade de ações afirmativas e de um órgão dedicado a essa pauta.
Em 8 de novembro de 2000 sobreveio a Lei nº 10.048 estabelecendo a prioridade de atendimento a idosos e pessoas com deficiência, assim como a reserva de vagas de estacionamento a esse público específico. O atendimento preferencial também foi estendido às gestantes, lactantes, pessoas com criança de colo, obesos ou com mobilidade reduzida.
Na sequência, a Lei nº 10.098, de 19 de dezembro de 2000, estabeleceu normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas “portadoras de” deficiência ou com mobilidade reduzida, visando eliminar barreiras e obstáculos em ambientes públicos e privados, no mobiliário urbano, no transporte e na comunicação.
Anos depois publica-se a Lei nº 11.133, de 14 de julho de 2005, instituindo o dia 21 de setembro como o Dia Nacional de Luta da Pessoa Portadora de Deficiência, norma que tem sua importância no cenário nacional ao reservar um dia específico no calendário para o debate do tema.
Pouca coisa efetivamente mudou na década seguinte, até a edição da Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015, quando foi instituída a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência), destinada a assegurar e a promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania (artigo 1º).
Para além de adotar preceitos da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU (CDPD), tratado internacional de direitos humanos, aprovado pela Assembleia Geral da ONU em 2006, e ratificado pelo Brasil em 25 de agosto de 2009, por meio do Decreto 6.949, a Lei Brasileira de Inclusão introduz a perspectiva da deficiência como um conceito biopsicossocial, onde a pessoa não é definida apenas por suas características corporais, mas pela interação com o ambiente e as barreiras existentes.
A lei também reafirma o teor da Lei nº 10.098/2000, que já versava sobre a necessidade da eliminação de barreiras físicas, atitudinais e de comunicação, tornando espaços públicos e virtuais acessíveis; assim como reprisa o teor da Lei 10.048/2000, no que tange à garantia atendimento prioritário para pessoas com deficiência em todas as instituições, serviços e processos, assegurando recursos humanos e tecnológicos adequados.
Spacca
A LBI também se ocupa de assegurar a inclusão da pessoa com deficiência na rede regular de educação, com a oferta de recursos de acessibilidade e apoio; prevê atenção integral à saúde da pessoa com deficiência no SUS, incluindo o diagnóstico e a intervenção precoces, além da oferta de órteses, próteses e tecnologias assistivas; protege a pessoa com deficiência de toda forma de negligência, exploração, violência, tortura e tratamento desumano ou degradante; e, no que tange aos direitos fundamentais assevera que estes abrangem o direitos à vida, à habilitação e reabilitação, ao esporte, ao lazer, à informação, à cultura e à convivência familiar e comunitária.
Como se vê, pródiga é a legislação nacional na proteção dos direitos das pessoas com deficiência.
Contudo, passados mais de três décadas desde a edição da Lei nº 7.853/89, o panorama real da inclusão ainda é desafiador. A nova Lei nº 15.155/25, ao incluir o incentivo ao empreendedorismo entre as medidas de apoio às pessoas com deficiência e atualizar a terminologia relativa às pessoas com deficiência, eliminando a expressão “portadora de”, parece buscar é um aprimoramento da fiscalização e da destinação de recursos, especialmente ao introduzir a obrigatoriedade de comunicação e o repasse de dados para fins de acompanhamento.
A criação de novos fluxos de informação, sem a devida infraestrutura tecnológica e recursos humanos capacitados, pode transformar o ato de comunicar em um fardo adicional para as entidades e os órgãos envolvidos, desviando o foco da verdadeira missão: a promoção da inclusão.
A esse respeito, Maria Emília Gadelha Serra e Denise Carreira apontam que a burocratização excessiva pode, paradoxalmente, dificultar o acesso aos direitos, criando barreiras administrativas que se somam às barreiras físicas e atitudinais (Serra & Carreira, 2011). Elas enfatizam que a complexidade de procedimentos muitas vezes afasta quem mais precisa do acesso aos seus direitos.
É fundamental se questionar se a alteração legislativa, por si só, é suficiente para superar os obstáculos históricos. A verdadeira inclusão transcende a mera previsão legal. Ela exige investimentos maciços em acessibilidade arquitetônica, tecnológica e atitudinal. Demanda a desconstrução de preconceitos, a formação de profissionais especializados e a garantia de oportunidades reais no mercado de trabalho e na educação. A fiscalização, embora necessária, não pode ser o único pilar.
Terminologia superada
Um ponto que chama a atenção, e que revela uma certa desconexão entre a intenção e a prática, é o fato de que a nova lei altera o texto de diversos artigos da Lei 7.853/89, mas mantém a ementa original da Lei de 1989 com a expressão “pessoas portadoras de deficiência”. Essa é uma crítica significativa, pois, embora o texto interno da lei seja atualizado, a ementa, que muitas vezes é a primeira e principal referência para a identificação e interpretação de uma lei, permanece com uma terminologia já superada e considerada inadequada pelos próprios movimentos de pessoas com deficiência.
Tampouco houve preocupação em se atualizar idênticas expressões reprisadas nas Leis nº 10.048/2000 (artigo 5º, e § 2º), nº 10.098/2000 (artigos 1º, 4º, 7º, 9º, 10, 11, 12, 13, 15, 16, 17, 18, 19, 21, 24 e 26), e nº 11.133/2005, de sorte que “portadores de deficiência” permanecem presentes na legislação infraconstitucional tanto quanto na lei maior, vez que as Emendas Constitucionais nº 94/2016 e 103/2019 se limitaram a atualizar a expressão contida no artigo 100, § 2º e no artigo 201, § 1º; permanecendo a vetusta expressão nos artigos 7º, inciso XXXI, 23, inciso II, 24, inciso XIV, 37, inciso VIII, 203, inciso IV e V, 208, III, 227, inciso II e § 2º, e 244, da Constituição.
Essa terminologia reflete uma visão que “portar” a deficiência como um fardo ou algo externo, em vez de reconhecer a pessoa com deficiência em sua integralidade. Como bem argumenta Élida A. S. R. de Siqueira em seu artigo, a linguagem é um elemento crucial na construção social da deficiência, e o uso de termos estigmatizantes ou inadequados reforça o modelo médico-centrado, em detrimento do modelo social e de direitos (Siqueira, 2018).
Passados dez anos da Lei Brasileira de Inclusão, o governo federal ainda não foi capaz de regulamentar avaliação biopsicossocial da deficiência, não obstante, reconheça-se, tenha publicado em 10 de abril de 2023 o Decreto nº 11.487, instituindo um Grupo de Trabalho sobre a Avaliação Biopsicossocial Unificada da Deficiência no âmbito do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania.
O relatório final do Grupo de Trabalho sobre a Avaliação Biopsicossocial Unificada da Deficiência no âmbito do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, apresentando a necessidade da criação do Sistema Nacional de Avaliação Unificada da Deficiência (Sisnadef), contudo o ainda resta necessária uma regulação legislativa para sua efetiva implantação, incluindo-se a revisão de atos normativos vigentes.
Entretanto, a dissonância entre norma e prática governamental efetiva, entre o corpo do texto e a ementa, entre normas constitucionais e infraconstitucionais demonstram uma falta de alinhamento com as discussões mais atuais sobre direitos e terminologia adequada, evidenciando uma oportunidade perdida para atualizar completamente o arcabouço legal à luz dos princípios da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Pode parecer pouco, mas faz com que persistam no discurso jurídico, a na doutrina barreiras atitudinais implícitas e explicitas.
O que se espera de uma atualização de uma lei tão relevante é um olhar mais atento para as barreiras que ainda persistem. A Lei nº 15.155/2025, ao focar na comunicação de dados e no controle, pode estar ignorando que a principal barreira para a inclusão não é a falta de informação sobre as violações, mas sim a dificuldade de implementação de políticas eficazes e a carência de recursos para tal.
O legislador, ao intervir novamente na Lei nº 7.853/1989, a pretexto de atualizar a terminologia relativa às pessoas com deficiência, teve a oportunidade de ir além. Poderia ter fortalecido a participação social no controle das políticas, estabelecido mecanismos mais ágeis de resolução de conflitos ou até mesmo previsto incentivos fiscais mais robustos para empresas que efetivamente promovam a inclusão. Em vez disso, optou por um caminho que, embora bem-intencionado, pode adicionar camadas de complexidade sem necessariamente resolver os problemas de fundo.
É louvável que haja uma preocupação governamental no incentivo ao empreendedorismo da pessoa com deficiência, com a perspectiva de linhas de crédito específicas; contudo, seria mais eficiente se o próprio governo cuidasse antes de assegurar a empregabilidade do significativo contingente de pessoas com deficiência mediante o imediato cumprimento da lei de cotas em todas as suas empresas públicas, fundações de direito privado e paraestatais.
Conclusão
A Lei nº 15.155/25 se apresenta como um paradoxo: ao buscar aprimorar a fiscalização e a destinação de recursos para a inclusão de pessoas com deficiência, corre o risco de criar mais entraves burocráticos do que soluções efetivas. Embora a intenção de garantir a transparência e a correta aplicação dos recursos seja válida, a manutenção de terminologias superadas na ementa da lei e a priorização da comunicação de dados em detrimento da superação de barreiras estruturais e atitudinais sinalizam uma oportunidade perdida para uma atualização legislativa mais profunda e alinhada com os desafios contemporâneos da inclusão.
A verdadeira inclusão transcende a mera previsão legal e exige um compromisso contínuo com investimentos em acessibilidade, formação profissional, desconstrução de preconceitos e garantia de oportunidades reais. É imperativo que os poderes públicos, a sociedade civil e as entidades envolvidas no tema da deficiência estejam atentas aos desdobramentos da nova lei, dando-lhe plena eficácia.
Sua eficácia dependerá não apenas de sua aplicação literal, mas da capacidade do Estado de transformá-la em um instrumento ágil e efetivo de promoção da inclusão, e não em mais um obstáculo burocrático. Caso contrário, o que era para ser um passo à frente pode se tornar um passo em falso na longa jornada rumo a uma sociedade verdadeiramente inclusiva, onde a dignidade e os direitos das pessoas com deficiência sejam plenamente reconhecidos e respeitados.
Referências
FSerra, Maria Emília Gadelha; Carreira, Denise. Direitos Humanos e Deficiência: Aspectos Teóricos e Práticos. São Paulo: Cortez, 2011.
Siqueira, Élida A. S. R. A linguagem dos direitos das pessoas com deficiência: da terminologia ao significado. Revista Direitos Humanos e Cidadania, v. 6, n. 1, p. 1-15, 2018.
Gabriel Guy Léger
é procurador-geral do Ministério Público de Contas do Estado do Paraná, diretor executivo da Associação Nacional do Ministério Público de Contas e coordenador técnico do Comitê de Acessibilidade e Inclusão do Instituto Rui Barbosa.
Leticia Veny Mendes de Souza
é advogada tributarista e colaboradora do Comitê de Acessibilidade e Inclusão do Instituto Rui Barbosa.
Opinião
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